domingo, outubro 19, 2008

Muito barulho por nada

Por Malu Fontes

Desde a eleição de Léo Krét do Brasil, famosa dançarina de um grupo de pagode soteropolitano, como uma das vereadoras mais votadas de Salvador, beirando os 13 mil votos, não se fala de outra coisa. De um lado, os conservadores, boquiabertos, mais chocados com a eleição da moça do que com o tsunami financeiro que assola as economias tidas até ontem como as mais robustas do planeta. De outro, os gaiatos, os falsos engraçadinhos que não perdem a chance de elaborar piadinhas sem graça para patetizar a transexual (denominação que ela mesma prefere, ao invés de travesti) e usá-la como bode expiatório para dizer que a Câmara de Vereadores se transformou num zoológico humano. Léo Krét, vale lembrar, é fruto do jornalismo popular no qual praticamente todas as emissoras locais vêm apostando pesado nos últimos anos.

Entre os dois discursos há mais em comum do que os representantes tanto do conservadorismo quanto da gaiatice admitem. Na essência, as duas correntes estão é repetindo o mesmo argumento embolorado, segundo o qual a presença de Léo Krét, com seus jeans de cintura baixa deixando à mostra a marca de biquíni adquirida no banho de sol na laje, em Pernambués (bairro popular de Salvador, onde mora a vereadora eleita), representa a esculhambação.

FALSA LIBERALIDADE - Independentemente do que a nova vereadora – sim, ela mesma reivindica enfática que quer ser chamada de vereadora, anuncia que vai usar tailleur com scarpins e não terno e gravata, além de jurar que vai porque vai usar o banheiro feminino – vai fazer ou deixar de fazer na Câmara, bom senso é bom e o próprio eleitor, com mau humor ou com sarcasmo, deveria mesmo era estar cansado da hipocrisia que viceja sob a epiderme da falsa liberalidade baiana.

O que, além do preconceito (de classe social e de gênero), justifica o fato de tanta gente achar que Léo Krét é mais 'cretina' do que tantos vereadores e tantas vereadoras que já passaram pelo legislativo municipal e não deixaram nenhum legado que prestasse para os ingênuos e incautos que os elegeram?

Não fosse a hipocrisia, os puristas, ingênuos e gaiatos estariam sempre chocados com os tantos nobres parlamentares que, embora nunca tenham sido objeto de nenhuma discriminação, usurparam direta e indiretamente muito dinheiro durante seus mandatos. Seja metendo a mão em verbas públicas graças a acordos costurados em troca de apoio ao Executivo – em toda e qualquer época, seja tendo a mão 'molhada' generosamente por empresários que sempre mantiveram seus negócios muito vivos justamente graças à habilidade em alugar parlamentares e seus mandatos para os transformarem em lobistas eficientes. Nunca a serviço de quem precisa, mas de quem pode e pôde pagar.

MANDUS - Não se fala aqui em generalizações, pois gente honesta tem em todo lugar. No entanto, embora devesse ser da natureza da atividade parlamentar aliar-se à honestidade, tal regra se tornou exceção, e das grandes. Diante da fauna de desonestidade que hoje tem assento nos parlamentos, se o medo é de desmoralização, Léo Krét corre o risco é de ser canonizada como a ingênua da corte, com seu guarda roupa kitsch, aparentemente mais interessada em flashes do que em dar uma banana para quem votou nela.

Mesmo que tenha um mandato pífio, não terá feito outra coisa senão repetir o ostracismo parlamentar que caracterizou o mandato de muito macho e muita mulherzinha naquela Casa. Diante dos mandus que passaram, passam e passarão pela "Casa do Povo", Léo Krét aparenta ser infinitamente mais inofensiva do que muitos dos respeitáveis senhores e senhoras que com ela dividirão o plenário.

DESPOLITIZAÇÃO - Para quem se pergunta quem elegeu Léo Krét, a resposta é óbvia: a televisão popular. A despolitização de Léo Krét era tão ostensiva, não remetendo a nenhuma promessa séria nem tampouco a bandeiras dessa ou daquela minoria ou comunidade que, aos olhos do eleitorado, já que é para não levar a sério, melhor radicalizar. A proposta de Léo Krét começa e termina nela mesma, na sua presença queer (estranha) no meio de gente que finge ser séria e normal, mas cuja essência é mais falsa que uma nota de quinze.

A TV criou o fenômeno eleitoral Léo Krét. Não o programa eleitoral, mas o saque do jornalista Pablo Reis, quando a escolheu para exibir na TV no programa de Bocão. A receita era uma sopa no mel em um programa popular: um corpo masculino artificialmente arredondado e feminilizado dentro de calças skinny strech de cintura baixa, madeixas encaracoladas untadas de umidificador. O produto era sinônimo, ao mesmo tempo do que há de mais freak, o espetaculoso, kitsch e over, tudo no grau máximo. Na campanha em busca de votos, enquanto candidatos metidos a sérios prometiam 'de novo outra vez' o paraíso na terra da felicidade, o retorno ou a chegada a uma Salvador tão mítica quanto falsa, improvável, impossível, Léo Krét só precisava rebolar e sorrir. Não queiram agora cobrar uma fatura que ela nunca se comprometeu a pagar. Mesmo porque nunca a cobraram dos outros.


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA.